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19 de Jan de 2023
Como reverter o cenário de ataques aos povos isolados
Apesar de protegidos constitucionalmente, indígenas em isolamento vivem sob ameaças como o avanço da fronteira agrícola, o garimpo ilegal e a grilagem
Lucas Zacari
19 de jan de 2023(atualizado 19/01/2023 às 20h52)
Os povos indígenas isolados sofrem com ameaças e invasões em seus territórios, apesar de o artigo 231 da Constituição Federal apontar que as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários são exclusivamente destinadas a eles. A expansão da fronteira agrícola, o garimpo ilegal e a grilagem são alguns dos fatores que ameaçam a existência dessas populações.
A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a posse de Sonia Guajajara como ministra têm um valor simbólico forte e podem significar um avanço na proteção e demarcação de terras de povos isolados. O decreto que oficializou a pasta, por exemplo, aponta que a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e o CNPI (Conselho Nacional de Política Indigenista) passaram a integrar o novo ministério. Os dois órgãos foram minados durante o governo Bolsonaro.
Neste texto, o Nexo apresenta quem são os povos isolados, como eles são ameaçados, como a gestão de Jair Bolsonaro lidou com o tema e quais as demandas dessas populações para o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
Quem são os povos isolados
Os povos indígenas isolados, de acordo com a Funai, são populações que, por vontade própria, decidem por não ter - ou evitar ao máximo - contato com outros grupos da sociedade, sejam não indígenas ou pertencentes a outros povos originários.
O isolamento desses grupos é relativamente recente. Não existem registros de grupos indígenas isolados antes do processo de colonização do território brasileiro A opção pelo isolamento pode ter sido decorrente de traumas e experiências negativas que o contato com outros grupos promoveu. Doenças, mortes, violência, exploração e tomada de recursos e territórios são algumas das motivações.
É função da Funai, por meio da GIIRC (Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados) e das FPEs (Frentes de Proteção Etnoambiental), a garantia do isolamento e do modo de vida tradicional desses grupos. O contato só pode acontecer quando houver uma ameaça iminente para essa população.
De acordo com a Funai, há 115 registros de presenças de indígenas em isolamento voluntário no país, sendo somente um registro fora da Amazônia Legal - que contempla toda a região Norte e parte dos estados de Maranhão e Mato Grosso. Na área amazônica, há 28 grupos confirmados; 26 em que há referências da presença de isolados e em estudo, mas sem total comprovação; e 60 em que há a informação da existência de indígenas, mas sem estudo.
Como e por que os isolados são atacados
O artigo 231 da Carta Magna brasileira reconhece aos indígenas os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, "competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) - tratado do qual o Brasil é signatário - também faz referência à autodeterminação dos indígenas e o reconhecimento de suas posses.
A principal ação governamental para proteção das TIs (terras indígenas) compostas somente por povos isolados - existem isolados que vivem em TIs de não isolados - é a chamada "restrição de uso". Com essa medida, o governo interdita a área para limitar a presença de terceiros enquanto não ocorre a demarcação dessas terras. Essa ação é realizada para assegurar a integridade física da população isolada.
Apesar das ações legais, os povos indígenas isolados sofrem constantemente com ataques e invasões aos seus territórios. Um estudo realizado pelo Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) publicado no início de janeiro de 2023 aponta que as TIs com a presença de isolados são as mais ameaçadas do bioma.
O levantamento considerou cinco fatores de risco que podem ameaçar a existência de povos isolados: desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras públicas, mineração ilegal e categorias de cunho jurídico-institucional.
Entre os triênios 2015-2018 e 2018-2021 - período de análise da pesquisa -, as TIs Ituna/Itatá, no Pará, e Piripkura, em Mato Grosso, ambas em status de restrição de uso, estão entre as dez terras indígenas com mais desmatamento na Amazônia. A primeira, inclusive, teve o maior aumento absoluto entre as que têm indígenas isolados.
A TI Ituna/Itatá tem o nível mais alto de risco, de acordo com o levantamento. Houve um aumento de 441% nos focos de calor nesta região e 94% de sua área está sobreposta a de registros de CAR (Cadastro Ambiental Rural, um cadastramento de propriedades rurais), o que é um possível indicativo de ações de grilagem. Segundo uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo de dezembro de 2022, o Ministério Público Federal investiga uma organização criminosa que faz grilagem na região, com nomes do alto escalão do funcionalismo público.
A soma das categorias de risco mostra que, além da Ituna/Itatá, outras 11 terras indígenas com presença de indígenas em isolamento voluntário estão em risco alto ou muito alto de ameaça.
Como o governo Bolsonaro tratou a questão
Antes mesmo de tomar posse, Jair Bolsonaro já demonstrava ser contra a demarcação de terras para povos indígenas. Em entrevista ao programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, em novembro de 2018, Bolsonaro disse que os 14% de terras indígenas demarcadas no país seriam suficientes para abarcar toda a população indígena. O ex-presidente também tinha uma visão antiquada de assimilação dos povos indígenas, ideia descartada no país desde a Constituição de 1988.
Essas duas correntes de pensamento pautaram o governo Bolsonaro. Apesar de herdar 54 demarcações de terras já julgadas no início de seu mandato, a promessa de não demarcação se confirmou e ele se tornou o primeiro presidente desde a redemocratização a não realizar nenhuma demarcação de terra durante todo o seu mandato. Segundo o jornal O Globo, também havia 129 processos em andamento antes de sua posse.
Com o argumento de desburocratizar e acabar com uma suposta influência dos governos petistas anteriores, o ex-presidente inviabilizou o funcionamento do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas em abril de 2019. Criado por Dilma Rousseff, o órgão tinha a função de representar os povos indígenas na criação de políticas públicas.
A Funai, apesar de não ter sido encerrada, foi alvo de uma série de desmontes e ataques. Logo ao assumir, Bolsonaro reorganizou os órgãos ministeriais por meio da medida provisória no 870. A Funai saiu da Justiça e foi para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Além disso, o setor de demarcação de terras foi deslocado para a pasta de Agricultura. Em agosto do mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal reverteu ambas as medidas.
No entanto, a gestão de Bolsonaro manteve uma postura contrária às atuações comuns da Funai. Em artigo do jornal O Estado de S.Paulo de julho de 2022, pesquisadores do Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas elencaram ações anti-indigenistas praticadas durante a gestão de Marcelo Xavier, presidente da Funai entre 2019 e 2022. Servidores do órgão apontaram, por exemplo, que havia barreiras para demarcação de terras e remoção de servidores responsáveis, militarização da organização e despreparo com as questões indigenistas, além de assédio moral e desmonte das condições de trabalho.
O fundador da ONG Instituto Socioambiental e ex-presidente da Funai entre 1995 e 1996, Márcio Santilli, disse ao Nexo em julho de 2022 que o órgão não estava sendo gerido como deveria: "O atual governo favorece os interesses de frentes predatórias, como a exploração mineral e a madeireira. Com isso, terras indígenas que não foram demarcadas continuam assim, e a que estão demarcadas passam a ser invadidas. Há um aumento inédito na prática de violência contra lideranças indígenas e seus apoiadores".
Uma das ações de Bolsonaro contra os povos indígenas foi a tentativa de liberação da exploração de minérios em TIs. O projeto de lei 191/2020 permitiria que o garimpo e o uso de recursos hídricos dessas áreas seria aberto para não indígenas. O governo pediu urgência para votar o projeto na Câmara, mas ele não chegou à discussão no plenário.
A principal atuação da Funai em relação aos povos isolados durante o governo Bolsonaro foi a não renovação das "restrições de uso". Normalmente, as limitações de entrada das TIs eram renovadas a cada três anos enquanto não havia a demarcação. A partir de 2021, muitas dessas renovações foram de apenas seis meses, o que resultou em ações judiciais.
Foi o caso de Ituna/Itatá, terra com nível mais crítico de ameaça entre as TIs. Em janeiro de 2022, a Funai emitiu uma nota alegando que não havia indícios de povos indígenas na região e, por isso, não iria renovar a restrição de uso. Também em nota, a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato) apontaram que esse tipo de medida nunca havia sido tomada desde o início da política de proteção aos isolados, iniciada com a redemocratização.
Em julho, o portal Repórter Brasil mostrou que Geovanio Katukina, na época coordenador interino de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, teria ignorado evidências da presença indígena em Ituna/Itatá. Segundo a reportagem, o parecer seria favorável ao senador Zequinha Marinho (PSC-PA), dono de um projeto de decreto legislativo para encerrar a interdição no local. A assessoria do senador, por meio de nota à Repórter Brasil, disse que a atuação de Marinho visava a resolver o conflito agrário na região.
Após pedido do Ministério Público Federal e decisão da Justiça Federal do Pará, a Funai renovou a restrição por mais seis meses para que os técnicos da organização analisassem o parecer. Em junho, a Funai renovou a restrição de uso da TI Ituna/Itatá até 2025.
Ao final do mandato, em dezembro de 2022, Bolsonaro ainda publicou uma medida permitindo a exploração madeireira em terras indígenas por não indígenas, o que, segundo especialistas, feria a Constituição. A medida deveria entrar em vigor em janeiro de 2023, mas a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, anunciou que a publicação foi revogada pelo novo governo.
O que o novo governo Lula pode fazer
Após um cenário de terra arrasada na área de políticas indigenistas, a gestão do terceiro governo Lula aponta para uma mudança nas relações governamentais com os povos originários. Apesar das dificuldades orçamentárias e administrativas que a área deve enfrentar, o presidente já revogou um decreto da gestão Bolsonaro que flexibilizava as regras para o garimpo ilegal em terras indígenas. O processo de demarcação de terras também deverá ser retomado, com 13 áreas já com a documentação pronta para serem homologadas, segundo o colunista Guilherme Amado no portal Metrópoles.
Essas ações vão ao encontro de recomendações apresentadas pelo Ipam para reverter o nível de ameaça aos territórios de povos indígenas isolados. De acordo com o estudo de janeiro, são recomendadas três ações para reverter o cenário negativo:
- garantir os direitos indígenas fundamentais, fazendo valer o artigo 231 da Constituição e a proteção dos povos isolados
- fortalecer o caráter técnico da Funai, para uma proteção territorial das TIs devida
- zerar as atividades ilegais como grilagem e garimpo
Essas iniciativas também estiveram presentes na "Proposta de Reestruturação e Consolidação da Política Indigenista para Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato", entregue pelo OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato) à equipe de transição do governo.
A proposta, obtida pelo jornal O Globo, continha um detalhamento da negligência da gestão de Bolsonaro pelos indígenas isolados e de como o novo governo poderia reverter a situação desses grupos. Entre as sugestões do texto, havia a retomada dos processos de demarcação de terra; a concessão de poder de polícia para os servidores da Funai que protegem as terras indígenas; a qualificação desses funcionários; a proteção dos defensores do meio ambiente e melhoria nas condições de saúde dos isolados são algumas das reivindicações presentes no documento.
À época, a transição não tinha nenhum especialista em povos isolados. Dez dias depois do envio do documento, foram chamados Eliésio Marubo e Beto Marubo, da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), e Leonardo Lenin, do OPI.
A criação do Ministério dos Povos Indígenas - primeira vez em que há uma pasta dedicada exclusivamente para os povos originários - ressalta a mudança de atitude entre as gestões. A Funai e o CNPI, os dois principais órgãos indigenistas até então, saíram da pasta de Justiça e Segurança Pública e foram para o recém-criado ministério comandado por Guajajara. A Funai, inclusive, será presidida por Joênia Wapichana, primeira mulher indígena a assumir esse cargo.
A atuação pelos povos isolados não é mais única e exclusiva da Funai. O novo ministério tem agora o departamento dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. A interação entre o departamento e a Funai pode facilitar o processo de restrição de uso e de demarcação dos territórios com indígenas em isolamento voluntário.
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