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A cidade que despreza o rio

FSP, Especial, p. 1-10
25 de Jan de 2010

A cidade que despreza o rio
Tietê, eixo de crescimento da cidade, hoje se resume a uma vala de esgoto cercada por asfalto

Da reportagem local

Há 456 anos, São Paulo nasceu às margens do rio Tamanduateí. São Paulo, 456, cresceu entre os rios Tietê e Pinheiros, se desenvolveu em uma área que envolve cerca de 3.000 rios, córregos e riachos. São Paulo, 456, foi palco do grito que, às margens plácidas do riacho Ipiranga, proclamou a independência do Brasil.
A história de 456 anos de São Paulo está intimamente ligada aos rios. Mas a cidade os despreza. O maior símbolo desse desprezo é o poluído e segregado Tietê, o rio das marginais congestionadas, o Tietê que alaga o Jardim Pantanal, que recebe o esgoto sem tratamento da região metropolitana. O Tietê que nunca mais terá vida, o rio com quem a cidade "briga" desde o século 19. O Tietê que une e separa bairros, cidades e vidas.

São Paulo exclui o Tietê, mas aceita o Pinheiros
Rio Pinheiros têm áreas nobres ao seu redor; já o Tietê, parece um estorvo

Evandro Spinelli
Da reportagem local

Diz uma piada que o rio Tietê tem tanto medo de água que ele foge do mar.
São Sebastião, no litoral norte paulista, fica a menos de 25 km da nascente do Tietê, em Salesópolis, mas ele "preferiu" correr para dentro do Estado até desaguar, 1.136 km depois, no rio Paraná, na divisa de SP com MS. Por isso, foi apelidado de "rio teimoso".
A teimosia do Tietê poderia ser vista como um privilégio para a cidade de São Paulo, cortada de leste a oeste por um dos mais importantes rios do país. Mas a cidade despreza o Tietê.
Até o Pinheiros, afluente do Tietê e tão fétido quanto, é mais integrado à cidade.
Às margens do Pinheiros passa uma linha de trem, está sendo feita uma ciclovia e estão alguns dos hotéis mais elegantes da cidade.
No rio Pinheiros fica o mais novo cartão-postal da cidade, a ponte Octavio Frias de Oliveira. A paisagem já foi servida até ao então presidente dos EUA, George W. Bush, que via de seu quarto de hotel a ponte e o rio.
Algumas das regiões mais nobres de São Paulo estão ali, bem próximas do Pinheiros. Algumas das mais importantes agências de propaganda do país também. Sem falar dos shoppings de luxo -Daslu e Cidade Jardim, por exemplo-, templos de consumo da elite.
E o Tietê? Ao contrário de integrar-se à cidade, mais parece um estorvo. Entre a Lapa e a Penha é quase considerado um obstáculo indesejado à expansão das vias expressas que passam por ali. Chegou-se a sugerir cobrir o rio com uma laje para os carros passarem.
No extremo leste da cidade, onde não há avenidas em suas margens, o rio disputa espaço com moradores que vivem praticamente todo o verão em áreas alagadas. O rio, como é óbvio, sempre ganha a briga e se torna indesejável.
"A relação que o paulistano tem com a água é a água da torneira. Mas onde tem mais água é no rio. O paulistano não olha os seus rios. E se olha, não vê, não os enxerga", diz a arquiteta urbanista Jenny Zoila Baldiviezo Perez, professora da FMU.
Em sua tese de doutorado, de 2004, Perez mostra que a região do Pinheiros se desenvolveu mais que a do Tietê por razões que remontam à década de 1920, quando começou o projeto de correção dos cursos dos rios. A arquiteta explica que o projeto de retificação do Tietê ficou a cargo da prefeitura, que optou por desapropriar apenas as áreas do próprio leito do rio.
Já no Pinheiros, o projeto foi feito pela Light, em uma das primeiras concessões públicas da cidade. A empresa, então, preferiu desapropriar praticamente toda a área da várzea e, ao longo das décadas, os terrenos foram sendo revendidos.
O resultado, diz a arquiteta, é que a área do Pinheiros adquiriu um parcelamento urbano do século 20 e a do Tietê permaneceu com o território ocupado como no século 19, mas com uma avenida no meio.
O processo de retificação do traçado do rio Pinheiros durou cerca de 20 anos -entre as décadas de 1920 e 1940. A Light mudou o curso do rio para jogar água para a serra do Mar e, lá, instalou uma usina de energia.

Reurbanização
A empresa aproveitou o projeto para adquirir um estoque de terras que seriam valorizadas ao longo do tempo. Os vazios urbanos criados na região propiciaram uma reurbanização da área que tiveram seu auge no boom imobiliário dos anos 1980 e 1990.
Já a retificação do Tietê foi mais longa. As negociações para desapropriação de áreas começaram nos anos 20, mas as obras só foram concluídas na década de 1980, com a obra do Cebolão -complexo viário que liga as rodovias Anhanguera e Bandeirantes com a marginal.
Como a prefeitura limitou as desapropriações à área projetada do rio, não houve uma reurbanização. Na região mais central, os terrenos ficaram com os antigos proprietários e, na maioria, já estavam ocupados. No extremo leste, as áreas foram ocupadas ao longo do tempo, devido à expansão urbana e ao crescimento populacional.
Agora, a batalha é retomar a importância urbana do rio Tietê. Dificilmente ele terá a mesma que o seu afluente Pinheiros, mas ainda pode ser uma área de lazer.
"Se tivermos uma travessia sobre o rio que permita às pessoas visualizar o skyline do Tietê, já vai ser um grande ganho", diz Perez. "A gente vê nesses dois rios potencialidades muito grandes e eles ainda podem oferecer muito à cidade. Basta lembrar que eles já foram muito importantes em termos de lazer e de esportes."
Um embrião da integração do rio com a cidade é projetado no futuro parque Várzeas do Tietê, que irá da Penha a Salesópolis. As obras começaram na zona leste, onde terá equipamentos para esportes e lazer.

Rio já está morto mesmo com projeto de despoluição
Possibilidade de o Tietê voltar a ter peixes na capital é descartada

Eduardo Geraque
Da reportagem local

O homem joga a bituca de cigarro na calçada. A mulher esquece de recolher as fezes do seu cachorro durante o passeio vespertino. No sábado pela manhã, o programa ainda pode ser lavar carros na rua.
Todo esse lixo, sólido e líquido, vai chegar ao Tietê e aos seus afluentes quando chove. Sem falar no esgoto doméstico, a principal fonte poluidora do rio, que entra limpo na cidade de Mogi das Cruzes.
A chamada poluição difusa -toda sujeira despejada no rio sem ser esgoto- matou definitivamente o Tietê na cidade de São Paulo, afirmam os especialistas. Ela representa cerca de 30% do esgoto que compõe a água escura que se vê da marginal, estima a Sabesp.
Mesmo que o programa de despoluição do rio paulista atinja as suas metas em alguns anos e praticamente corte o fornecimento de esgoto para o Tietê, ele nunca mais vai ter peixes. O rio está morto, porque a carga de poluição difusa será sempre longe de zero.
"Você pode até ter um ou outro peixe entrando [sob a ponte das Bandeiras ou dos Remédios, por exemplo] mas ele vai viver pouco tempo e morrer", afirma Malu Ribeiro, coordenadora de projetos da ONG SOS Mata Atlântica, instituição que, historicamente, vigia a qualidade ambiental do rio.
Além das bitucas, dos restos da lavagem do carro e dos dejetos animais, tem muito mais coisa, afirma Antonio Costa e Silva, engenheiro civil da Sabesp. "O resto dos pneus dos carros, as toneladas de carbono que existem no ar [por causa da queima de combustível]. Tudo vai para o rio quando chove."
Pelo cronograma da companhia de água, o grande marco será o ano de 2018. "Nós vamos universalizar a coleta e o tratamento de esgoto [nos municípios atendidos pela Sabesp]", afirma Costa e Silva.
Números de hoje mostram que o projeto de despoluição do Tietê já conseguiu avanços. "Saímos de um patamar de 4.000 litros por segundo de esgoto tratado, em 1992, para os atuais 16 mil litros por segundo, em média", diz a Sabesp. Até agora, foram investidos no programa R$ 1,6 bilhão, entre recursos estaduais e federais.
Apesar disso, relatórios da Cetesb (agência ambiental do Estado) mostram que a situação continua "péssima" no Tietê na capital. "Essa é a classificação da água no nosso ponto de coleta na ponte dos Remédios, por exemplo", diz Nelson Menegon Júnior, gerente da divisão de qualidade das águas e do solo da Cetesb.
Em números aproximados, diz Menegon Júnior, a vazão média do Tietê é de 60 metros por segundo. Porém, 37 metros por segundo é formado por matéria orgânica biodegradável. As bactérias comem esse esgoto e, neste processo, esgotam o oxigênio disponível na água. Por isso, não existe peixe.
Para a ambientalista da SOS Mata Atlântica, mesmo sem peixe, e muito menos sem a possibilidade de mergulho no Tietê na capital, a diminuição de esgoto em direção ao rio terá um benefício. "A melhora do odor pode fazer, pelo menos, que se pense em navegar no Tietê a partir de 2018", afirma.
A questão, lembra Ribeiro, não é apenas o cheiro, mas também o contínuo trabalho para que o rio não seja assoreado. Ao lado do desprezado Tietê, do ponto de vista paisagístico pelo menos, existe o Pinheiros.
Mas, apesar de integrado ao horizonte da cidade, este canal artificial tem uma água via de regra pior que a de seu vizinho. "Em dia quente, dá para sentir isso da marginal", diz Ribeiro.

Primeira grande enchente ocorreu em 1850
Vila Maria chegou a ficar isolada durante três meses por um grande lago em 1929

Colaboração para a Folha

Teimoso não é o rio, por seguir contra o mar rumo aos grotões do Centro-Sul. Teimoso é o paulistano em querer domar as águas mutantes do rio Tietê, que sempre correram cada ano sobre um leito diferente.
Prova disso é que a primeira grande enchente registrada em São Paulo é de 1850 -apenas um ano após concluída a retificação do rio Tamanduateí. Na época, o presidente da província, Manoel Felizardo de Souza e Melo, já afirmava que as águas governavam SP. Por meio ano, a cidade era uma ilha entre o Tietê e o Tamanduateí, dizia.
Os teimosos que viviam ao norte do rio, porém, não duraram em sua teimosia -separados da cidade pelas cheias, foram vencidos pelo cansaço. Santana, primeiro bairro de além-Tietê, tem até hoje vida própria justamente por isso.
Mas é exceção. Em 1929, ano da maior enchente da história de SP, o bairro de Vila Maria ficou isolado durante três meses por um grande lago. Os teimosos continuaram ali, mas o rio, retificado, foi para longe.
Nessa época foram esboçadas avenidas marginais -no início bulevares verdes; hoje, teimosia em asfalto e concreto. Essa transformação coincidiu com a última competição de natação do Tietê, em 1944, quando o então nadador João Havelange contraiu febre tifoide. Em 1950, o rio estava morto.
O boom imobiliário que seguiu a inauguração da marginal adensou a região e deslocou os canteiros de obras para o leito do rio. Isso significa que há 40 anos o paulistano vê retroescavadeiras e caçambas de concreto em meio a suas águas.
O que restou à cidade, segundo o arquiteto José Fabio Calazans, que estuda o Tietê há 32 anos, foi uma imagem negativa do rio. Como se não fizesse parte da cidade, "as pessoas olham para o rio e pensam em quanto ele fere a paisagem", diz.
Teimosa, SP ainda crê que há solução para os problemas da cidade. Para Calazans, SP deveria pensar mesmo em soluções para o rio. (TN)

Tietê já teve 29 projetos fracassados
Desfigurado por megaempreendimentos, o rio ostenta marcas das várias tentativ as de contê-lo

Tai Nalon
Colaboração para a Folha

Desde 1948 até hoje, ao menos 29 estudos e intervenções foram feitos no rio Tietê, na região metropolitana de SP, no esforço de conter enchentes, combater doenças e despoluir suas águas. Depois de 152 anos, o rio amarga seguidos fracassos -nenhum dos projetos chegou ao fim ou ao objetivo esperado.
O resultado disso se reflete na paisagem: desfigurado por megaempreendimentos de engenharia, o rio Tietê ostenta marcas de cada uma das tentativas malsucedidas de contê-lo.
Exemplo disso é o projeto do engenheiro Saturnino de Brito, de 1924. Foi, por um breve período, o plano oficial do município para a urbanização do entorno do rio. Até hoje tido por urbanistas como referência, acabou descartado. Como resquício ficou o atual traçado do rio, parecido com o do projeto.
Foram as prioridades da SP-metrópole, porém, que decretaram a morte de mais de uma dezena de projetos. De 1890 até 1930, com algumas interrupções, o município manteve uma comissão estratégica de estudos do rio. A partir de então, deslocar-se com rapidez tornou-se, tal como é hoje, a vedete da engenharia paulistana.
O Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia exemplifica essa transição de prioridades. De início, a marginal era para ser, na verdade, uma avenida verde. Conciliava planejamento urbano com a construção de avenidas, mas foi desfigurada pelas gestões seguintes.
A partir de então, com um Tietê poluído e margeado por avenidas impermeáveis, seguiu-se mais de uma dezena de projetos pontuais de infraestrutura urbana para conter o derramamento de esgotos e escoar a água das enchentes.
Até a década de 1970, por exemplo, a solução era cruzar as montanhas com tubos de esgoto parcialmente tratado, conforme previa, por exemplo, o projeto "Solução Integrada". Para conter as enchentes, seriam construídas seis barragens ao longo do rio -de pé só ficou a de Ponte Nova.
As décadas seguintes traçaram metas que município e Estado ainda tentam provar serem viáveis. Por 25 anos e pelo menos cinco projetos, insistiu-se na ampliação da calha como solução para as cheias e na revisão de metas de saneamento.
Para a arquiteta urbanista Jenny Zoila Baldiviezo Perez, professora da FMU, assim como os projetos, a relação do paulistano com o rio foi interrompida. "Hoje, esse é um dos principais entraves para se fazer uma proposta definitiva".
Aos 456 anos de SP, a cidade ainda tenta alcançar o bonde da história. Enquanto isso permanece no passado, conforme afirma Perez. "O Tietê ainda é um território do século 19", diz.

Obras na marginal engessam o futuro do rio
Para especialistas, Tietê se tornará rio urbano que deve ser despoluído

Mario Cesar Carvalho
Da reportagem local

A nova marginal engessou o futuro do rio Tietê, com pistas que passam a três metros da margem, segundo arquitetos como Fábio Valentim.
O projeto de um rio que tenha uma memória do que ele foi um dia, com margens que alagavam e locais para prática de esportes, é só uma utopia. O futuro do Tietê, na melhor das hipóteses, é tornar-se um rio urbano, como o Sena em Paris, o Tâmisa em Londres e o Hudson em Nova York, de acordo com pesquisadores como a engenheira Monica Porto.
"Essa ideia de rio urbano não é necessariamente ruim", diz ela, chefe do departamento de engenharia hidráulica da Escola Politécnica da USP e coordenadora de dois dos planos para a bacia do Alto Tietê, encomendados pelo governo do Estado. "O Sena e o Tâmisa estão colados à rua e ninguém reclama."
Valentim, do escritório de arquitetura Una, premiado na Bienal de Veneza, tem uma visão oposta à da engenheira: "Com a nova marginal, o rio vai piorar do ponto de vista ambiental e paisagístico. Podiam até alargar a marginal, como um ato emergencial, mas não há plano para o futuro."
Para ele, a ausência de planos é decorrência da prática -"de todos os partidos", como frisa- de realizar obras de olho nas próximas eleições. "Não existe projeto urbano que possa ser feito em quatro, cinco anos. Precisa de 40, 50. Como aqui tudo é ditado pelas campanhas políticas, não há urbanismo."
Porto, que se diz otimista, acha que o Tietê tem tudo para tornar-se um Pinheiros, com áreas valorizadas nas margens. "Peixinho não vai ter, mas em 2020 o rio estará limpo e os caminhões vão passar no Rodoanel. Aquela região tem tudo para trocar as garagens de caminhão por prédios de escritório."

Com poluição, sem futuro
Julio Cerqueira Cesar Neto, professor aposentado de engenharia hidráulica da Poli e consultor, diz não ver a menor condição para o Tietê virar um Sena. A questão central, para ele, é a qualidade da água que a Sabesp joga no rio. "O esgoto tratado que vai para o rio não passa de 22% do total despejado."
Segundo ele, a Sabesp trata 14 metros cúbicos por segundo de esgoto na região metropolitana, mas joga no rio outros 50 metros cúbicos sem tratamento. Esses números, conforme ele, não foram alterados na última década, nos governos de Geraldo Alckmin e José Serra, ambos do PSDB. Cerqueira Cesar e Porto só concordam num ponto: sem despoluir o rio, não há futuro para o Tietê.
A professora da Poli diz que pela primeira vez em seus 30 anos de carreira há um plano para o futuro. Ela cita quatro iniciativas: o programa Córrego Limpo, que visa recuperar os afluentes do Tietê, o parque linear, o projeto da Sabesp para aumentar o tratamento de esgoto e a construção da pista norte do Rodoanel. "É por isso que eu acho que em 2020 o Tietê estará como o Sena", diz.
Cerqueira Cesar, que chama a nova marginal de "gambiarra que vai ficar congestionada em seis meses", diz que as novas pistas deveriam preservar as margens do rio que foram concretadas no governo Alckmin.

Para Dersa, obra vai ajudar no combate às enchentes

Da reportagem local

A Dersa afirma que o aumento de pistas na marginal do Tietê não interfere no rebaixamento da calha nem no escoamento do rio.
Segundo a empresa, além de otimizar o trânsito, a nova marginal vai melhorar os pontos em que a pista é rebaixada (pontes das Bandeiras e da Casa Verde) para compensar a baixa altura das pontes.
Nesses locais, será aumentada a capacidade de absorção de água, reduzindo a possibilidade de alagamentos, de acordo com a Dersa.
A empresa do governo paulista diz que a obra vai ter um impacto positivo no combate às enchentes, ao triplicar a vegetação ao lado das pistas de 4.500 para 15 mil árvores.
Nota da Dersa ainda diz que serão plantadas no entorno da via 83 mil mudas de árvore, por meio do projeto Várzeas do Tietê, que ajudaram a combater enchentes ao reter a água antes de ela chegar à marginal.

Sabesp
A Sabesp diz que não faz sentido a acusação de que a empresa não fez nada com o esgoto jogado no Tietê nos últimos dez anos. Segundo a companhia, foram investidos US$ 1,7 bilhão entre 1992 e 2008 na primeira e na segunda etapas do projeto Tietê. A terceira etapa, que vai até 2015, vai investir mais US$ 1 bilhão, de acordo com a Sabesp.
O tratamento de esgoto na região metropolitana mais do que duplicou entre 1999 e 2008, segundo Paulo Nobre, superintendente de tratamento nessa região. Em 1999, eram tratados 7 metros cúbicos por segundo. Atualmente, são 16, de acordo com ele. (MCC)

Há vida no Tietê
Margens do rio são povoadas por barqueiros, por "chapas" e por camelôs que dependem da lentidão do trânsito

Laura Capriglione
Daniel Bergamasco
Da reportagem local
Flávia Marcondes
Colaboração para a Folha

Pegue uma kombi velha (também serve uma van Iveco, mas tem de ser sucatão mesmo); corte as capotas; vire de cabeça para baixo. Pronto! Aí estão dois barcos. A seguir, pregue um pedaço de plástico rígido na ponta de um cabo de enxada. Repita a operação. Agora, você tem dois remos. Jogue barcos e remos nas águas do rio Tietê, que passa bem atrás da sua casa, e está feito. Você é dono de uma linha de transporte alternativo.
Os barcos feitos de capota ficam na casa do Anselmo Desidério da Silva, 40, e da Cláudia Cardoso Santos, casados. Há quase 40 anos, a família está no ramo do transporte fluvial. Antes, quem tocava a empresa era o pai de Cláudia. R$ 1,50 é o preço para atravessar de uma margem à outra -São Paulo a Guarulhos, ou o contrário. Funciona das 7h às 19h.
O "terminal de passageiros" veio antes da casa. Fica em um ponto em que a largura do rio não passa dos 30 metros. Facilita a travessia.
A casa foi construída aos poucos. Hoje, tem dois quartos, duas cozinhas e dois banheiros, compartilhados por duas famílias que estão furiosas com a prefeitura e com o governo do Estado, que querem retirá-las dali para a construção de um parque linear (o local é parte do Jardim Pantanal). "Nós sempre vivemos com o rio, nas graças do rio", diz Cláudia. "Já conseguimos tirar até dois salários mínimos com o barco."
Anos atrás, um cabo de aço ligava uma margem à outra. Ajudava a evitar que a correnteza do rio arrastasse as embarcações. "A Polícia Ambiental veio e proibiu o uso do cabo", lembra Anselmo. Agora, é no muque, com os remos de cabo de enxada e plástico, que ele segura o seu navio-pirata (funciona sem alvará, licença ou autorização do poder público).
Na maior parte do ano, as capotas flutuam sobre uma lâmina de água, fezes e dejetos com 2 metros de profundidade. Nesta estação de enchentes, subiu para 5 metros.
A clientela dos barcos-sucata? São camelôs que precisam chegar à estação de trem do Itaim Paulista (na zona leste de São Paulo) e que, vindos de Guarulhos, teriam de pegar um ônibus intermunicipal para chegar à linha de trem. O preço do bilhete intermunicipal é R$ 6 ida e volta, contra os R$ 3 pelo rio. A principal vantagem, entretanto, é o tempo de viagem. De 3 a 4 minutos de barco contra quase uma hora ou mais de ônibus (entre espera e a viagem propriamente dita).
"É só gritar que ele vem", diz o estudante Lucas Soares, 15, um dos usuários do transporte, morador em Guarulhos.
Nos dias normais, até 8 pessoas vão no barco -por viagem. Quando a correnteza está forte, a lotação máxima cai para 5 pessoas. "Não faço a travessia porque gosto, mas porque pedem. Quando meu sogro morreu não ia continuar com o barco. Mas fizeram um abaixo-assinado aqui para voltar, com mais de mil assinaturas", conta Anselmo, orgulhoso.

"Homem-GPS"
"Chapa, ao seu dispor", diz Adelso Matos Nogueira, 58. Nogueira pode ser encontrado na marginal Tietê, bem em frente ao Sambódromo, ao lado de uma placa tosca em que se lê "Chapa". Os cerca de 24,5 km da marginal abrigam cerca de 100 "chapas" como ele, "amigões" dos caminhoneiros.
O caminhão recém-chegado a São Paulo tem de ir para Osasco e o motorista não sabe como chegar lá? Tem de ir para Santo Amaro? "Deixa comigo. Eu levo o cara aonde ele quiser. Tenho o guia de ruas na minha cabeça", diz. Nogueira, que nem sabe o que é GPS, é o autêntico homem-GPS.
Tem a vantagem de vir equipado com músculos. Hoje em dia, o mais comum é que os motoristas contratem junto o serviço de carregamento ou descarregamento dos caminhões. Trabalho duríssimo, remunerado à base de R$ 10 por tonelada (só o serviço de levar o caminhão até o local encomendado, sai por no máximo R$ 50).
"Teve mês que tirei R$ 1.000, mas agora tá difícil. Tem muita gente invadindo os pontos", diz o "chapa", ex-operário da Odebrecht que nunca mais arrumou emprego. "A idade é o que mais pesa", diz.

Sem tempo ruim
Há 15 anos, Ricardo Gonzaga de Lima, 35, trabalha como ambulante, oito na Marginal Tietê. Todos os dias, ele atravessa a marginal para ocupar seu "ponto", pouco antes da ponte dos Remédios, sentido Ayrton Senna. Ele torce para fazer sol porque vende mais água e sucos. E também torce para chover -quando chove vende mais comida. "Se tem enchente é ainda melhor, fica tudo parado."
Só o que não para é a turma dos camelôs da Marginal. Na última quarta-feira, o ex-presidiário José Benedito Guimarães, 54, que "puxou" 30 anos de cadeia até ser solto, há dois, festejava o sucesso na pista do suco Keko, sabor pêssego, ultragelado, colorido artificialmente com o corante "amarelo crepúsculo" -R$ 2 a unidade. Mas também saía demais um salgado frito em formato de bacon -sem marca. E pipocas de canjica, porque nem tudo é novidade. A gastronomia da marginal é intensa como o rio que passa ao lado -"Acho que vai dar para tirar uns R$ 600 neste mês", comemorava Guimarães.

Há 64 anos, casal namorava às margens do Tietê

Colaboração para a Folha

Todos os dias quando ia para a Associação Atlética São Paulo, Mário Lago Negro, então aos 20 anos, passava em frente à casa de Odete Marsala. Ela, aos 17, parada à porta ou à janela, recebia os elogios, risonha. O cortejo durou alguns meses, até que ele tomou coragem e a pediu em namoro. O ano era 1946.
Ele nadava, ela também, mas cada um por um clube. Odete era sócia do Regatas Tietê, onde entrou aos 10 e iniciou na natação, praticada no cocho do clube (piscina demarcada na margem do rio). Quando os dois começaram a nadar, a piscina do paulistano ainda era o Tietê, que tinha a cara limpa
Cada um de um lado, o namoro não daria certo. Os clubes não eram rivais, mas o tempo que o casal ficava junto era precioso. "Era muito difícil namorar", diz Odete, hoje com 81.
Mário queria levar a namorada para seu clube, do outro lado da rua. Só que Odete não quis saber. Bateu o pé. "Eu era militante, participava de competições com Maria Lenk. Éramos amigas", justifica-se, engrossando a voz. Sem alternativa, mudou-se Mário.

Enfim, juntos
A decisão foi acertada. No mesmo clube, os pombinhos podiam nadar juntos, almoçar juntos e até passear juntos sob às árvores que existiam próximo à margem do Tietê.
O casamento aconteceria em 1951. Algum tempo antes, o casal passara à piscina construída no clube, pois o rio já não era mais "aquele" e João Havelange já tinha contraído febre tifoide na Travessia de São Paulo a Nado, em 1944.
Em seguida viria a marginal, afastando de vez Odete e Mário das águas onde um dia mergulharam. "Infelizmente, hoje o Tietê está sujo, não tem mais ninguém. Era uma água limpíssima, maravilhoso", lembra. E faz silêncio. O marido morreu há quatro anos. (FM)

Rio que já uniu também separa casal paulista

Da reportagem local

O rio outrora risonho e límpido, capaz de unir casais, hoje não apenas segrega dois lados de uma metrópole com sua sujeira e suas enchentes.
Que o digam o motorista Ivanmar Vasconcelos Salles, 38, e a balconista Jessica Aparecida Pereira dos Santos, 20. Em outubro do ano passado, ambos ficaram famosos ao caírem de carro no Tietê, perto da ponte da Freguesia do Ó.
O namoro conturbado terminou ali mesmo, mais precisamente na 4ª Delegacia da Mulher, onde Jessica prestou queixa acusando o ex-namorado de ter tentado matá-la jogando o carro no rio. "Ele não aceitava o fim do namoro", disse a jovem à Folha naquela ocasião.
Embora Ivanmar tenha perdido um carro no valor de R$ 20 mil e atribuído o acidente a uma perda de sentidos, a Justiça, por precaução, resolveu completar o trabalho do rio e separar o casal conforme a lei.
O Tietê, que dentro de São Paulo tem largura média de 50 metros, deixou um hiato de 300 metros entre entre a alegada vítima e o suposto agressor. "Ao menos essa era a determinação da medida protetiva que impusemos a ele", diz a delegada Vanderlene Suedy Bossan.
Como a medida era muito eficiente no papel, mas impraticável na vida real, já que as casas de Ivan, como é conhecido no Jardim Robru ( zona leste de SP), e de Jessica são uma ao lado da outra, a balconista resolveu aumentar um pouco mais a distância entre ambos e foi, segundo a família, para a Bahia ficar na casa de uma tia.
Exibindo uma barriga de grávida e trajando uma camiseta com a inscrição "100% disponível", uma vizinha que mora em frente às duas casas e que não quis se identificar diz ter ouvido falar que Jessica hoje namora um primo de segundo grau, um segurança de 30 anos. "Ela gosta de homens mais velhos", observa a irmã da jovem ao confirmar a história.
Ivan não quis conversar com a reportagem. Na garagem de sua casa, o Mazda 1994, que teve perda total, continua coberto com uma lona. Os pneus ainda conservam a lama do Tietê que nem a chuva dos últimos dias conseguiu limpar. (JC)

País tem pelo menos 13 rios urbanos na UTI
A maioria está com a qualidade comprometida devido ao excesso de esgoto domiciliar e industrial

James Cimino
Da reportagem local

"Nossas cidades cresceram de costas para os rios. É uma questão cultural herdada da colonização europeia, na qual o rio era sempre visto como um sumidouro de dejetos, algo que foi feito para levar a sujeira para longe."
A afirmação é da especialista em recursos hídricos da ONG SOS Mata Atlântica Malu Ribeiro, mas é quase consenso entre pesquisadores do assunto e secretarias de Meio Ambiente de diversos Estados consultados pela Folha.
De acordo com esse levantamento feito pela reportagem, há pelo menos 13 rios de áreas de grande concentração urbana do país que estão em estado de atenção, ou, como diz a pesquisadora, "na UTI".
Outros, assim como o Tietê, já estão mortos mesmo, como é o caso do rio Belém, que fica em Curitiba, cidade que paradoxalmente ostenta o título de capital ecológica.
Na região Norte, a situação é amenizada devido ao grande volume dos rios, que acabam diluindo os efluentes e apresentando, em análises de qualidade da água, uma concentração baixa de poluentes químicos e materiais orgânicos.
No Nordeste, onde a coleta e o tratamento de esgoto muitas vezes não chega a 1% da população, a situação também é crítica. A região metropolitana de Recife, por exemplo, tem três rios com problemas: o Ipojuca, que recebe esgoto industrial e doméstico, e o Capibaribe e o Beberibe, que atravessam a cidade assim como o Pinheiros e o Tietê fazem em São Paulo carregando o esgoto de áreas tanto nobres quanto pobres da capital pernambucana.
O mesmo acontece em Belo Horizonte, Maceió, Fortaleza, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belém, Cubatão e no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, ou seja, não é só a capital paulista que massacra seus rios com seus dejetos, refugo industrial e lixo (veja quadro).
"De uma forma geral, 70% dos grandes rios brasileiros estão contaminados por esgoto doméstico. Os índices de saneamento básico e de tratamento de esgoto são baixíssimos. Nas capitais, a situação é bastante crítica, muito semelhante à situação de São Paulo. Em alguns lugares com índices menores, em outros, com índices maiores, principalmente nas áreas litorâneas e principalmente no Nordeste, onde a coleta e o tratamento de esgoto chegam a 1% ou menos", diz a pesquisadora Malu Ribeiro.

Problema nosso?
A ausência de redes de coleta e de estações de tratamento de esgoto no Brasil é um problema político, embora alguns dos entrevistados pela Folha associem a questão à falta de consciência ambiental da população. Segundo Clemente Coelho Junior, do Instituto BiomaBrasil, as administrações públicas investem pouco nesse setor porque "isso não dá voto". "As obras geralmente são subterrâneas, e os benefícios aparecem no longo prazo."
O secretário de Recursos Hídricos de Pernambuco, José Almir Cirilo, confirma a tese, embora não diga que há má vontade do poder público. "As pessoas têm que saber que os resultados disso demoram a aparecer. Em Londres, levou 30 anos para que o Tâmisa fosse despoluído."
Malu Ribeiro, do SOS Mata Atlântica, diz que é difícil conscientizar a população e cobrar melhorias no tratamento do esgoto. "Em pesquisas que realizamos, muita gente afirma não ter ideia de que o rio onde ela despeja o esgoto é o mesmo de onde se coleta a água para seu consumo. Mesmo em Londres, só houve essa consciência quando ficou impossível de se realizar sessões no Parlamento Britânico, tão grande era o mau cheiro do Tâmisa."

Projeto de 1924 previa bulevar onde hoje é a marginal

Colaboração para a Folha

Imagine um rio Tietê com barcos, pedalinhos e peixes. Pense também em um rio Tietê de onde é possível retirar a água para cozinhar e tomar banho. Vá mais além: imagine um Tietê margeado por um bulevar florido entrecortado por canais que avançariam São Paulo adentro, rumo ao ponto final das barcas que levariam diariamente trabalhadores em fim de expediente para casa.
Todas essas possibilidades -hoje apenas fruto dos sonhos do mais criativo arquiteto- foram contempladas por aquele que é até hoje considerado "o projeto dos projetos" urbanísticos para as margens do rio Tietê -o do engenheiro urbanista Saturnino de Brito.
O estudo "Melhoramentos do Rio Tietê" foi apresentado em 1924 por uma comissão nomeada pela prefeitura e liderada pelo engenheiro, mas nunca saiu do papel -seja por divergências políticas; seja por ter sido considerado caro.
Dele, porém, ainda partem ideias propagandeadas como o último megainvestimento da engenharia moderna paulistana; a construção de piscinões para conter as notórias enchentes de verão de São Paulo, por exemplo.
Brito previa uma solução para as enchentes diferente do que é executado hoje. Conforme a planta do projeto, dois lagos funcionariam como piscinões. Na altura de Santana (zona norte), o leito do rio seria ampliado. Os lagos seriam separados por uma ilha, por cima da qual passaria a ponte das Bandeiras. Ali também desaguaria o rio Tamanduateí.
A impermeabilização das margens tal como hoje não estava em seus planos, embora tenha sido o primeiro a esboçar vias marginais em um Tietê retificado. Já que previa transporte de pessoas pelo rio, as ruas serviriam de ponto de encontro e lugar de passeio. As pontes, de ligação entre bairros residenciais, os quais, por sua vez, ocupariam as margens a uma distância segura.
"Saturnino dizia não estar interessado na beleza paisagística do Tietê, mas em sua funcionalidade para a cidade", afirma a arquiteta urbanista Jenny Zoila Baldiviezo Perez. O projeto, segundo ela, é de qualidade indiscutível. (TN)

Artista encontra inspiração nas águas poluídas do Tietê

Colaboração para a Folha

Canteiros de obras, água suja, pontes engarrafadas. Para muitos, esses temas são pouco interessantes, principalmente se estão relacionados ao rio Tietê, que há anos vê o paulistano virar-lhe as costas. Mas para Edu das Águas é diferente. O pintor encontra inspiração justamente no lugar que o resto da cidade evita.
Ao menos uma vez por semana, Eduardo Marques de Jesus, 71, deixa seu ateliê, no Imirim, e vai para as margens do Tietê munido de prancheta e tintas. Ele pinta, em cores vivas, pontes, árvores, barcos: tudo o que pode ver e imaginar.
"Não vou ao Tietê para criticar, vou como artista", explica. Ele se considera membro da "escola tropicalista" porque suas obras têm a alegria do brasileiro. Apesar disso, seus mais de 400 quadros sobre o rio se inspiram no impressionismo.
O interesse pelo tema veio por acaso. Desenhista desde pequeno, Edu saiu do orfanato para trabalhar como ilustrador e começou a estudar pintura.
Na época, ouviu de um professor que onde tinha água, tinha assunto. E acreditou. Passou a pintar só onde houvesse um córrego, mar ou cachoeira e ganhou seu nome artístico.
A relação com o Tietê começou depois, no início dos anos 90. Certo dia, engarrafado na marginal, se deu conta: "Vou longe pintar rios e tem um aqui do lado!"
Além das cobras que diz ter visto às margens, Edu já caiu no rio e foi assaltado debaixo de uma ponte.

Arte e ambiente
A proximidade ao malquisto rio fez com que o artista fosse além da imagem e adotasse a causa ambiental. "Minha geração foi porca, destruímos o rio", diz.
Em 1997 iniciou um projeto de educação com crianças, usando a pintura para falar sobre qualidade de vida, higiene e reciclagem.
Nos últimos anos, porém, Edu deixou a militância. "Nós, artistas, nos mobilizamos, mas sabemos que quem resolve são os políticos." Hoje ensina crianças no seu ateliê. (FM)

FSP, 25/01/2010, Especial, p. 1-10

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