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Ayahuasca diminui sintomas de depressão em pesquisa brasileira

FSP, Ciência, p. B5
15 de Jun de 2018

Ayahuasca diminui sintomas de depressão em pesquisa brasileira
UFRN consegue publicar estudo sobre chá usado em rituais após recusa de 12 revistas científicas

Marcelo Leite
SÃO PAULO
Estudo científico rigoroso, conduzido ao longo de três anos, comprova eficiência de duas plantas contra depressão em pessoas intratáveis com remédios disponíveis na praça.

Boa notícia, certo? Para cerca de 100 milhões de deprimidos que não respondem a tratamento, num total de 300 milhões no mundo, sim. Não para os editores de 12 periódicos especializados.

Só nesta sexta-feira (15) o artigo aparece publicado, um ano e cinco meses depois de submetido pela primeira vez a uma dessas revistas. Sai em Psychological Medicine, da editora da Universidade de Cambridge (Reino Unido), a 13ª publicação procurada.

"Efeitos antidepressivos do psicodélico ayahuasca em depressão resistente a tratamento: um ensaio randomizado com controle de placebo" é a tradução do título da pesquisa. Feita na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ela tem como autor principal Dráulio Araújo, físico convertido à neurociência.

"Este é o primeiro estudo controlado com ayahuasca para depressão, e os resultados são promissores e interessantes", diz o neurocientista.

"Graças ao movimento de repositórios de 'pre-prints', o artigo está disponível desde a data da primeira submissão no bioRxiv", ressalta Araújo. Ou seja, a comunidade científica não foi privada da informação relevante pela má vontade de editores.

A Psychological Medicine é um periódico respeitável. Tem um fator de impacto 5,23 (ou seja, cada artigo publicado recebe em média mais de cinco citações por outros cientistas).

O pesquisador da UFRN conta que os pareceres recebidos de revisores técnicos foram sempre positivos. Mesmo assim, os responsáveis por revistas como Lancet Psychiatry decidiram por conta própria não publicar.

Um dos fatores que pode ter pesado contra o trabalho foi já estar disponível no bioaRxiv (pronuncia-se "bioarcaive"). Outro, ter sido feito num país periférico. Outro ainda, tratar de produto alucinógeno, natural, de uso tradicional, impatenteável.

A ayahuasca é um tipo de chá feito com um cipó e as folhas de outra planta. Sua ingestão costuma produzir "mirações", um dos nomes atribuídos às visões que induz, além de náuseas e diarreia (a "peia", ou surra, de que falam alguns adeptos de seu uso ritual).

A exemplo de outras drogas psicodélicas, como LSD, ela parece atuar sobre áreas do cérebro envolvidas no processamento de humores e emoções e sensíveis ao neurotransmissor serotonina, por exemplo aumentando nelas a circulação de sangue.

"A ativação de partes do cérebro que respondem à serotonina leva a uma reação em cadeia, que altera a maneira como os neurônios se comunicam entre si e a própria organização cerebral", diz sobre o efeito dos psicodélicos Stevens Rehen, neurocientista do Instituto D'Or de Ensino e Pesquisa, que não participou do estudo.

Ainda não está claro, contudo, o mecanismo do potencial efeito antidepressivo da ayahuasca. Na pesquisa conduzida na UFRN, ela demonstrou ao longo de sete dias ser mais poderosa e persistente na redução dos sintomas de depressão que o placebo dado aos pacientes.

"Esse desconhecimento não é problema, já que o funcionamento de diversos psicofármacos ainda é pouco esclarecido. Essa é uma grande oportunidade para novas pesquisas no Brasil, onde a bebida [ayahuasca] não é ilegal", afirma Luís Fernando Tófoli, psiquiatra, co-autor do artigo e pesquisador na Unicamp.

"É importante assinalar que a ayahuasca como tratamento é experimental. Seu uso terapêutico ainda não está regulamentado", ressalva Tófoli.

Participaram do ensaio 29 pessoas com depressão que haviam enfrentado tratamentos com pelo menos dois antidepressivos de classes diferentes, sem sucesso, e sem uso prévio de ayahuasca.

Os 14 que tomaram o chá receberam a bebida enviada à UFRN pela igreja Barquinha, de Ji-Paraná (RO). Os outros 15 ingeriram, como placebo, uma beberagem com ingredientes para torná-la marrom, amarga e azeda como a ayahuasca, assim como sulfato de zinco para provocar leve mal-estar gastrointestinal.

Todos os 29 foram acomodados das 8h às 16h em aposentos confortáveis, com cama, poltrona reclinável e música suave.

Após explicações detalhadas sobre efeitos, recebiam o chá por volta das 10h com a recomendação de relaxar e ficar de olhos fechados. A qualquer momento podiam chamar uma dupla de pesquisadores na sala ao lado.

Os pacientes passaram por entrevistas um dia antes e um, dois e sete dias depois da sessão. Uma semana depois, testados com questionários padronizados, 9 dos 14 do grupo da ayahuasca ainda tinham escores melhores para depressão, inclusive com aumento da melhora. No outro grupo, apenas 4 de 15.

"Estamos muito animados com esses novos resultados", disse em comunicado do grupo Jaime Hallak, outro coautor do estudo, professor de psiquiatria na USP.

Essa pesquisa brasileira se soma à voga crescente de ensaios com substâncias psicodélicas no tratamento de transtornos mentais. Proibidas nos anos 1960, elas deixaram de ser pesquisadas quase totalmente, mas no momento retorna o que foi reprimido.

Nos EUA, por exemplo, está para entrar na fase final de testes clínicos o uso de MDMA (principal componente do ecstasy) como adjuvante em terapia estresse pós-traumático. Estão na mira, ainda, alcoolismo e outras modalidades de dependência química.

"Há uma nova onda psicodélica a caminho, e temos a chance de recuperar o tempo perdido", diz Dráulio Araújo no comunicado. "São substâncias poderosas, que devem ser tratadas com grande respeito e usadas em ambientes e com intenções apropriados."

Ele vê obstáculos à frente, porém. Será preciso ampliar a amostra de pacientes nos estudos que virão e testar o uso da ayahuasca como alternativa aos antidepressivos existentes ­-e não só para as pessoas resistentes a tratamento.

Tampouco será fácil resolver questões como acesso a preparados confiáveis, padronização, dosagem e custo de sessões que duram várias horas -sem contar que muitos pacientes podem não se dispor a encarar as mirações e sofrer com as peias.

"Não é todo mundo que gosta de montanha-russa", ressalva Araújo, um adepto de surfe, paraquedismo, mergulho oceânico e ioga.

https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2018/06/ayahuasca-diminui-sintoma…

FSP, 15/06/2018, Ciência, p. B5

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