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Adolescentes chefiam 16,5 mil casas em SP

FSP, Cotidiano
Autor: SÍLVIA CORRÊA e PALOMA COTES
16 de Jul de 2002

Censo 2000
Adolescentes chefiam 16,5 mil casas em SP
Número supera população de 3.663 municípios do país; responsabilidade precoce pode ser raiz de separações

SÍLVIA CORRÊA
PALOMA COTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Alguns se sentiam sozinhos e resolveram casar e ter filhos. Outros perderam os pais -às vezes vítimas da violência- e se viram obrigados a criar os irmãos. Por opção ou destino, crianças e adolescentes são hoje chefes de 16.495 domicílios na capital paulista.
É pouco se comparado ao número total de domicílios permanentes da maior cidade do país -2,986 milhões. É muito se considerarmos que esses pequenos chefes de família -com idades que vão dos 10 aos 19 anos- somam um exército maior do que a população de 66,5% dos 5.507 municípios recenseados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2000 -3.663 cidades, se tomados os números absolutos.
Esses domicílios chefiados por crianças e adolescentes estão espalhados pela cidade -sobretudo na periferia. As maiores concentrações deles, porém, aparecem em duas comunidades indígenas em Parelheiros, distrito do extremo sul de São Paulo -a Área Indígena Curucutu e a Área Indígena da Barragem.
Lá, do total de chefes de domicílio,18,18% e 13,89%, respectivamente, tinham, por ocasião do Censo 2000, de 10 a 19 anos.
O número de domicílios chefiados por esses jovens e sua distribuição pela cidade foram obtidos com a ajuda do software chamado Estatcart, desenvolvido durante um ano e meio pelos técnicos do IBGE e lançado ontem no Rio.
O programa fornece informações por setor censitário -pequena áreas nas quais o governo dividiu cada cidade para fazer a coleta dos dados no recenseamento. Em São Paulo, foram 13.278 setores -pequenos o bastante para que pudessem ser percorridos por um só pesquisador.
Haverá informações por setor censitário apenas para as 1.154 cidades com mais de 25 mil habitantes. Para cada uma delas, o IBGE criará um CD-ROM, que será vendido pelo governo federal.

Tradição e solidão
Na Área da Barragem, onde vivem índios tupi-guarani, os casamentos precoces são comuns -e, com eles, as responsabilidades de chefe de família.
Os motivos, dizem os próprios adolescentes, vão da carência sentida por eles com a perda dos parentes mais velhos à própria tradição, que prega que as meninas da aldeia estão prontas para o casamento tão logo tenham a primeira menstruação.
Foi assim com Clarice Onório, a Djatxuka. Aos 12 anos, casou-se pela primeira vez. Hoje, aos 17 anos -no segundo casamento e com duas filhas-, não sabe explicar por que tudo aconteceu "tão cedo" e lamenta não ter aproveitado mais a adolescência.
"Acho que [o casamento precoce" foi por causa do costume ou porque alguém da minha família quis. Não sei ao certo", diz Clarice. "Casar com uns 20 anos deve ser melhor. Na segunda vez, por exemplo, já fui eu que escolhi o meu marido porque gostei dele."
O marido de Clarice tem 19 anos. Chama-se Karamirim ou Fábio, conforme o interlocutor. Ambos dividem as tarefas domésticas e os trabalhos com artesanato -única fonte de renda na reserva indígena de 26 hectares. Assim sustentam Júlia, 2, e Flávia, cinco meses. Júlia é filha do primeiro casamento de Clarice.
Conversar com os adolescentes da aldeia é uma forma de entender na prática as explicações que os estudiosos traduzem dos livros e das histórias das clínicas.
"Há inúmeros motivos que empurram o adolescente para o mundo. Um deles pode ser a cultura, sim, mas há outros, como o desgaste das relações familiares, a solidão que isso gera, a perda traumática de parentes, por exemplo", diz o psicólogo Elias Korn Neto, 48, coordenador do grupo de acolhimento de dependentes da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
"Ele [o adolescente] procura no outro o afeto e o amor que não tem em casa", diz a psicóloga Maria Beatriz Loureiro, 48, professora da Unesp.
É o que diz Lenílson, 18, vizinho Fábio e Clarice. Casado há um ano com Cristina, 16, ele tem uma filha, Luzia. Diz que optou pelo casamento para não ficar sozinho. "Perdi meu pai e minha mãe. Precisava de alguém para dividir as coisas. Tem horas que ser casado é ruim, porque a gente briga. Mas tem horas que sou muito feliz."

Pobreza e consequências
O software do IBGE mostra que a maior parte desses jovens chefes de domicílio moram na periferia da capital paulista e em áreas com baixa renda -dos 108 chefes de famílias da Área Indígena Curucutu, por exemplo, só 12 disseram ao Censo ter renda formal.
"Em comunidades mais excluídas não há espaço para os ritos de passagem. A criança precisa crescer logo porque não há espaço para crianças nem para brincadeiras", diz o psicólogo Korn Neto.
Soma-se a isso "a curiosidade afetiva e sexual típicas da adolescência, estimulada, por exemplo, por uma excessiva valorização do corpo", continua Maria Beatriz.
As consequências dessas responsabilidades precoces variam de indivíduo para indivíduo, segundo os psicólogos. Mas há algumas tendências.
"A adolescência tem uma função clara de ritual de passagem e, como tal, é uma época de muita confusão e experimentação. Portanto, quem não vive isso pode cair em extremos: ou se tornar responsável demais e, com isso, ser muito rígido consigo mesmo e com os outros ou acabar se tornando um adolescente tardio, como naquelas casas que parece só haver irmãos, sem pai", diz Korn.
"Muitos se separam. Isso ocorre muito mais por não suportarem a carga do que deixaram de viver do que por insatisfação com o que estão vivendo", diz Maria Beatriz.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1607200201.htm

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