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Acordo sobre recurso genético fica para 2010

FSP, Ciência, p. A14
01 de Abr de 2006

Acordo sobre recurso genético fica para 2010
Conferência da ONU em Curitiba chega ao fim sem avanços sobre como parar a onda global de extinções

MARI TORTATO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM CURITIBA

O encontro da CBD (Convenção da Biodiversidade) da ONU em Curitiba terminou ontem sem avanços nas metas definidas há quatro anos: adotar ações para reduzir a taxa global de extinções e definir um regime de compensação financeira pelo uso do patrimônio genético a países com elevada variedade de espécies.
Às 23h de ontem, a plenária de encerramento deu seu aval à proposta de consenso na COP-8 (8ª Reunião das Partes). O texto propõe a criação de um grupo de trabalho com a tarefa de, nos próximos quatro anos, definir regras internacionais para remunerar países pobres donos de elevada biodiversidade pela exploração de seus recursos genéticos.
O assunto desperta o interesse direto das indústrias de cosméticos, de fármacos e de alimentos.
Às 22h30, na posição de presidente da plenária, a ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, tentava convencer os delegados a não emperrar a aprovação -sob pena de as tradutoras irem embora. "As intérpretes não vão continuar depois das 23 e apelo para que a pauta ande, sob pena de que os trabalhos continuem apenas em inglês", disse ela, que só fala português.
À tarde, depois de negociações de duas semanas, havia concordância de países ricos e pobres da necessidade de adoção de um regime de ABS (sigla em inglês para Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios). O assunto foi o tema mais polêmico discutido na reunião de Curitiba.
A proposta caminhava para que o grupo de trabalho formulasse um protocolo de regime de ABS até 2010. Assuntos igualmente complexos como a criação de um fundo para financiamento da pesquisa de novas espécies e moratória para avanços da biotecnologia sobre florestas trangênicas foram adiados para o próximo encontro, em 2008, na Alemanha.
ONGs como Greenpeace e Via Campesina apontaram "fracasso" das negociações. Atribuíram a classificação aos adiamentos das decisões importantes para quatro ou seis anos.
Os coordenadores do evento, ao contrário, só fizeram análises positivas. A ministra Marina Silva, que preside a CDB até 2008, diz que a reunião de Curitiba avançou ao obter o consenso de países ricos e pobres para o regime de acesso e repartição de benefícios. "A próxima reunião [COP-9, a ser realizada na Alemanha, em 2008], não terá que se debruçar mais sobre temas que, ao longo dos anos, ficaram sempre entre colchetes e nunca avançavam", disse ela, ao tentar apontar os avanços. Em convenções diplomáticas, assuntos pendentes vão para os documentos finais guardadas por colchetes como indicativo de que não há consenso.

Conquista dos EUA
O governo americano ameaça cortar 50% da verba que destina ao GEF (Fundo Mundial do Ambiente) nos próximos quatro anos. A proposta que o governo de George W. Bush enviou ao Congresso reduz de US$ 428 milhões (de 2002-2006) para US$ 224 milhões o orçamento de 2007-2010 para o GEF, mecanismo de financiamento da CBD.
Apesar do corte anunciado, o secretário-executivo da CDB, Ahmed Djoghlaf, disse que a entidade vai contar com US$ 1 bilhão do GEF nos próximos dois anos.
Mas Djoghlaf disse que caberá à diplomacia brasileira atrair a maior potência do mundo para a convenção, nos próximos dois anos em que Marina Silva estiver na sua presidência.
Mesmo sendo o maior financiador do GEF, os EUA não são membro da CDB. Mas atuaram no interesse de sua indústria, como para evitar o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança -que passaria a exigir a identificação de transgênicos nas exportações- e a adoção do regime de repartição de benefícios. O governo Bush mandou 27 delegados como observadores da COP-8.
O chefe da delegação brasileira, embaixador Antonio Patriota, disse que a estratégia da CDB para os próximos dois anos é usar a liderança do Brasil em negociações internacionais para alcançar a universalização dos acordos sobre biodiversidade. Ainda segundo ele, as boas relações entre os governos Lula e Bush vão favorecer a aproximação.

Convenção é um morto-vivo sem poder nem rumo
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Aconteceu no segundo dia de COP-8, mas podia ter sido em qualquer um. Os delegados que integravam o Grupo de Trabalho 2 elogiavam o "sorriso auspicioso" no rosto do presidente do grupo, Sem Shikongo, da Namíbia. Um conterrâneo sugeriu que o bom humor se devia ao fato de que os namibianos comemoravam 16 anos de independência naquele dia. Shikongo, porém, emendou logo: "Eles estão lá se divertindo e tomando cerveja, e nós aqui trabalhando".
Foi assim, como quem estava ali só de corpo presente, que se comportaram muitos dos representantes dos governos do mundo ao longo da conferência. A situação seria menos vergonhosa se ficasse restrita a esse humor capenga, na linha "a ONU segundo Monty Python", mas quem acompanhou as batalhas intermináveis em torno de uma vírgula sabe que foi muito pior que isso.
A COP-8 marca o triunfo do sarumanismo dentro da CBD (Convenção sobre Diversidade Biológica). "Sarumanismo", claro, exige explicação, mas a metáfora vale a pena. Saruman é o nome do mago renegado do romance "O Senhor dos Anéis", que começou como proponente de uma utopia tecnológica e acabou como tirano fracassado. Não que os delegados da COP-8 tenham pessoalmente o desagradável hábito sarumânico de alimentar fornalhas com árvores inteiras, mas numa coisa muitos deles são iguais: o divórcio entre palavra e ação (neste caso, mais inação do que qualquer outra coisa) que dominou o evento.
Que o diga o espetáculo triste dado pela delegada Felicity Buchanan, da Nova Zelândia, que deteve as conversas sobre o regime de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios durante 60 preciosos minutos porque não queria uma menção a "derivativos" desses recursos no texto.
Detalhe: o texto estava muito longe de ser uma decisão final. Tratava-se apenas de uma recomendação para o grupo de especialistas que deve se reunir nos próximos anos para discutir a viabilidade de um certificado internacional de origem de produtos derivados da biodiversidade. Incluir "derivativos" nesse certificado (ou seja, produtos alterados em relação ao recurso genético original) obviamente não interessa à indústria dos países desenvolvidos. Argumento neozelandês: permitir essa discussão equivaleria a transferir decisões políticas para um grupo técnico. Então tá.

Convenção sem poder
A situação é mero sintoma do problema maior que é a CBD, um amontoado de boas intenções sem coordenação interna, financiamento adequado ou, o que é mais importante, poder de fato para implementar suas decisões -isso, é claro, se elas fossem mais específicas que o pedido para reduzir de forma "significativa" a perda de biodiversidade até 2010.
Também é sintoma das dificuldades do sistema multilateral da ONU, incapaz de fazer as nações enxergarem um problema realmente global e fazer alguma coisa a respeito sem colocar seu interesse próprio de curto prazo na frente de todo o resto. Enquanto a ciência diz há pelo menos 15 anos que a Terra está entrando numa fase de extinções em massa causadas pela mão humana, os delegados acham que mais estudos são necessários. Atiram pela janela o princípio da precaução, segundo o qual ninguém precisa de todas as informações do mundo para agir contra uma catástrofe.
Dito desse jeito, parece que a culpa é só da CBD e da ONU. Não é. Também está sobre as cabeças de boa parte das ONGs que encheram o evento de Curitiba com protestos barulhentos, alimentando a velha paranóia em relação aos transgênicos (até onde se sabe, injustificada, pelo menos por enquanto) e desviando energia do essencial. Enquanto elas cerravam fileiras contra o tigre de papel das "sementes suicidas" Terminator, a farsa continuava.
Ahmed Djoghlaf, o recém-empossado secretário-geral da CBD, repetia o tempo todo que a convenção havia "voltado para casa [nasceu na Eco-92, no Rio] para ganhar vida nova". O que se viu ali, porém, foi um morto-vivo.

FSP, 01/04/2006, Ciência, p. A14

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